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Tal como dois pombinhos

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CINTHYA NUNES

 

Estavam ali, um ao lado do outro, de olhos fechados, na calçada. Próximo deles uma vasilha com restos de comida. Um era marrom e branco e outro, branco e cinza. Como os olhinhos fechados, pareciam estar dormindo, exceto pelo fato de estarem mortos, provavelmente envenenados.

Não sei a razão pela qual as pessoas odeiam tanto os pombos. Não gostar é uma coisa e até aí tudo bem. Também não gosto de um monte de gente e vida que segue, mas odiar a ponto de matar só por matar, de forma cruel, é algo que não sou capaz e nem nunca serei capaz de aceitar.

Eu os vi enquanto caminhava pelo bairro e a cena triste marcou-me a fogo. Com fome, por certo comeram o que ali foi deixado com a finalidade de exterminá-los ou, igualmente criminoso, de matar algum gato ou cachorro que procurasse por comida. Pombos são meio gulosos e por certo sentiram-se felizardos pela oferta generosa de alimento. Morreram lá mesmo, quase encostados um no outro, testemunhas e vítimas da bestialidade e ignorância humanas.

Curioso e lamentável como a sociedade romantiza a ideia da existência dos pombos, cujos desenhos ilustram cenas, inspiram poetas, simbolizam paz, amor e esperança, mas, na vida real, são incapazes de enxergar os seres que vivem, que sentem fome, medo, que são tão donos desse mundo quanto nós.

Insepultos, os corpos devem ter ficado lá na sarjeta, à margem, esquecidos até que alguém, quiçá o responsável pelas mortes, negando-lhes a dignidade de voltar à terra, os remova como lixo, coisificados pela insignificância que lhes atribuem.

Em verdade nem sei por que me revolto, tamanha a minha própria impotência e pequenez. Em um mundo no qual pessoas dormem e morrem nas ruas, socialmente sepultadas em vida, onde crianças se drogam em plena luz do dia e às vistas das autoridades, quem é que se importa com dois pobres pombos mortos?

Eu tenho pena dos pombos e a eles já dediquei vários textos, ainda que saiba que minhas palavras não têm o poder de mudar quase nada. Sei que são amigáveis, inteligentes e que, tolos, não temem os seres humanos. São animais monogâmicos e formam um casal para vida toda.

É óbvio que não prego a proliferação desenfreada de pombos, nem mesmo que infestem locais urbanos. Fezes de qualquer animal podem transmitir doenças, inclusive as de cães e gatos, a propósito. E quanto a isso, muita gente vive em meio à imundície. Fato inconteste é que invadimos o mundo de tal forma que vivemos como se todo o restante da vida fosse um incômodo, como se nós fossemos os únicos posseiros deste planeta com justo título.

Penso que falta compaixão e piedade na forma como tratamos os pombos. Morrem aos montes pelas ruas, invisíveis, indesejados, inseridos involuntariamente em ambientes que não lhes oferecem moradias naturais. Amados no papel, representam, ao meu sentir, um dos mais frequentes sentimentos humanos: a hipocrisia. Já a Paz é um ideal inalcançável em tempos de intolerância.

Enquanto isso, nas calçadas do mundo, pombinhos morrem de (des)amor, monogâmicos também no partir, no derradeiro bater de asas.

 

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e lamenta pelas asas que o mundo corta impiedosamente.

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