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Até tu, Golias?

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CINTHYA NUNES

 

                Não vi direito quando ele se aproximou de mim dentro da loja e tomei um susto ao notar que a voz que se dirigia a mim vinha de baixo. Era um menino pequeno, de pele morena, vestido de bermuda e camiseta.

_Oi, eu não vou fazer nada de mal para você. Não precisa ter medo de mim: sou criança.

Eu não estava com medo dele, até porque sequer o vira antes, mas fiquei triste pensando que mundo é esse em que crianças são temidas pelos adultos. Notei que ele segurava uma manta vendida na loja. Pediu-me que a comprasse para ele.

Perguntei a razão pela qual ele queria aquilo, pensando no calor que fazia ali dentro e no sol que estava lá fora.

_É que eu moro na rua e à noite faz frio.

Onde estavam os pais dele? No mercado, tentando arrumar comida para ele e para os irmãos. Disse-me que frequentava a escola e percebi que sabia ler, pois pedi para que conferisse o valor do cobertor. Deixou comigo uma garrafinha de água, para que eu tomasse conta, enquanto ele ia até a prateleira, voltando rapidamente com um número.

Não era exatamente barato e eu disse que ia pensar. Orbitando ao meu redor, ele me ouviu dizer que precisava de garfinhos para o bolo e me perguntou se eu iria em alguma festa. Respondi que sim.

_E de quem é a festa? Onde vai ser?

_ Minha. Na minha casa. Meu aniversário.

_ Que legal! Parabéns – falou, abrindo um grande sorriso.

O nome dele era Davi. Davi Wesley. Tinha 8 anos. Pedi que fosse comigo até o caixa. Minutos depois os dois irmãos dele apareceram, igualmente segurando mantas de frio, com a etiqueta da loja.

_ Você ganhou um? – perguntou um menino gordinho, com ares de ser o irmão mais velho – Também queria. Compra um para mim também, moça?

Lamentei não poder comprar um para cada um, até porque sempre fico com receio de doar coisas a pessoas na rua, mas mantive a palavra dada. Enquanto aguardávamos na fila, segurando a coberta, o menino dançava embalado pela música ambiente da loja, sacudindo os quadris e fazendo passinhos.

Paguei o cobertor e o entreguei ao garoto, junto com uma caixa de bombons, pedindo que a repartisse com os irmãos. Admito que não estou certa sobre a destinação da coberta, mas tenho certeza de que aquele Davi ainda era uma criança no sentido legítimo da palavra.

Não sou capaz de traduzir em palavras, mas ali ainda morava uma alma feliz, inteira, alheia ao entendimento sobre a desigualdade. Aquele Davi ainda deve vencer seus Golias, mas é um placar que tem tudo para ser invertido. Depois daquele encontro inadvertido, novos Golias passaram a assombrar meus textos e minhas emoções e eu lamento, em muitos sentidos, ser ainda menor que o Davi, inclusive do que o Davi Wesley.

 

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e não acha normal ter medo de crianças – cinthyanvs@gmail.com/www.escriturices.com.br

               

 

 

 

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